Jussara Lucena, escritora

Textos

Epílogo da tese: O Discurso Docente sobre o Ensino da Cardiologia na Graduação Médica na Faculdade de Medicina da UFRGS

Transformar uma investigação de natureza científica em algo palatável ao leigo tornou-se um desafio do qual não se abriu mão, sentindo-se que seria lamentável, se acaso se deixasse o texto entregue somente ao seu desiderato natural: as prateleiras de uma biblioteca acadêmica, desaguadouro de tantas teses e dissertações — reconhecimento possível, talvez único.

Para que não ficasse restrito a essa situação hegemônica optou-se pela sua socialização e procurando-se enveredar por outros canais, não somente puramente acadêmicos, mas que são a razão de ser dessas instituições de produção do saber e sua multiplicação.

E, nesse momento em que se dá um término momentâneo ao texto, repetir situações disponibilizadas pelas falas docentes torna-se um reforço factível e uma reverberação de tantas reflexões que, mesmo implícitas nestas análises, adquirem significância e permitem a visibilidade ampliada tão desejada.

Assim sendo, ao se encerrar essa breve abordagem salienta-se a inclusão do mundo subjacente do ensino - os saberes e seu reconhecimento -, e, para tanto, parte-se de algumas determinações obtidas de excertos da obra de Michel Foucault. A busca de um padrão discursivo legitimado orientou-se pelos ideais do que seja ser médico/professor e pelos modelos de identificação com o hospital e do sujeito da educação por si.

Ao conhecer o sujeito falante, o ator do discurso, evidenciou-se a vasta rede de significações que se formou no contexto da instituição médica de ensino. Deduz-se, portanto, que a constituição da racionalidade anátomoclínica como uma objetivação limitadora (parafraseando Foucault), é pouco debatida nas arenas discursivas da medicina. Daí, evidencia-se – como se apontou - o embate entre racionalidades diversas, expressas no positivismo científico e no subjetivismo educacional.

A força da organização das especialidades no mercado, articulada aos conteúdos da clínica médica tem, de outro lado, Diretrizes (DCN) que propugnam pela formação de médicos com capacidade e responsabilidade clínica integral e de maior relevância social e imbuídos de maior reflexão. Antes de questionar se a formação médica estaria adequada aos modos de reformular a clínica e a saúde pública e se a reforma do ensino dependeria da reforma dos saberes e práticas que as orientam, buscou-se conhecer o modelo vigente. Para tanto, constatou-se que este se mantém a custa de estratégias que acabam por privilegiar a formação médica por especialidades, de alta tecnologia, alto custo, etc.

O dualismo, tanto nas discussões quanto nas práticas acadêmicas, pode resultar em outro modelo de formação médica; no entanto, viu-se, também, que pode se estagnar em práticas isoladas e estanques. A perspectiva desta análise partiu do processo de embate entre aquelas racionalidades a fim de visibilizar os movimentos de ruptura e/ou continuidades na especialidade da cardiologia.

Nessa obra evidencia-se a necessária relação entre a nova forma de entender e agir sobre o corpo e as demandas de uma sociedade que busca uma biopolítica eficiente e voltada, acima de tudo, à prevenção epidemiológica e promoção da saúde, observando, além das DCN, a própria CF/88. Nesse sentido, destacam-se alguns eventos e discursos docentes que revelam como pode ocorrer a construção de um novo perfil médico (ou possível reformulação do existente), considerando-se, igualmente, as dificuldades nesse contexto.

A reforma curricular presente nas DCN, como se buscou demonstrar, é legitimada pela Sociedade Brasileira de Cardiologia (SBC), porém, nas falas dos professores entrevistados, há a indicação de que tende a confluir para os discursos educacionais dominantes. No entanto, também persiste forte resistência dentro da medicina — e mesmo na educação médica – para que se alcancem espaços para essas discussões. Resistência presente na amostra de professores da cardiologia da Universidade entrevistados, que apresentam um caráter diferenciado ao prescindirem de análises teóricas em relação à prática e à preparação pedagógica para o ensino de medicina, sendo sua atuação docente pautada, em geral, na vivência e na aprendizagem histórica como professores, tendo seus mestres por modelo. Há fortes dicotomias envolvendo o fazer docente, tensionadas pelo que diz respeito ao discurso e à prática, à pesquisa e ao ensino, entre alta e baixa complexidade, especialmente.

Já, em um debate mais específico quanto à docência médica, discutiu-se a constituição, vocação, perfil e controle docente. Algumas falas explicitaram que tanto a forma quanto o perfil requerido para o ingressante a docente na FAMED/UFRGS se aproxima mais do pesquisador-especialista do que do professor. Nesse sentido, é possível tratar de um perfil docente que continua tendo na anátomoclínica sua perspectiva médica e na tradição sua pedagogia, pois não há uma teorização e crítica reflexiva sobre o ato de ensinar, sobretudo em medicina. Há, sim, uma sistemática crítica aos controles e gestões que, paradoxalmente, os professores evidenciam como “um mal necessário”.

Historicamente, constituir-se professor na medicina associa-se a formas de poder-saber também relativas ao ingresso do docente na FAMED/UFRGS, e ali tendem a ser reforçadas, pelo que se apontou, como a “didática própria” e racional do ensino médico, presente desde seus primórdios, fruto do controle por excelência que foi (e é) fator positivo, mas, se exacerbado, requer adequações.

Quanto ao perfil docente, a par de classificações tipológicas, não se tem claro um perfil hegemônico. E há outro ponto relevante: o fato de que a extrema valorização da pesquisa, paradoxalmente, tem levado professores a se afastarem das atividades de ensino. Isso evidencia, por um lado, a dissociação de ensino-pesquisa-extenção como atividades correlatas e, por outro, uma associação a um fazer vocacionado, isto é, tornar-se professor acaba sendo resultado da vocação de ser médico, não havendo uma preocupação em buscar preparação específica para o ensino em medicina.

Nesse ponto, as ferramentas foucaultianas de interpretação do poder foram bastante úteis para que se pudesse compreender o disciplinamento e o controle no trabalho docente: há uma identidade docente marcada pela instituição, o que se reflete no aluno da UFRGS, capacitado a aprender seja qual for a dinâmica docente acessada, levando-o até a eventual especialização precoce. Ou, de outro lado, aparece o aluno com a dita “síndrome do aluno da UFRGS”, aquele que vive eternamente as honras de ter sido aprovado na rígida seleção para um curso extremamente concorrido de uma universidade de excelência.

Conclui-se que o elo de relação entre esses dois comportamentos discentes identificados faz parte de uma mesma sistemática, refletida no perfil do graduando: a falta de estímulo a um senso mais crítico, mais reflexivo em relação à construção do conhecimento, algo que traz em si um tanto de responsabilidade do próprio estudante.

A medicina e sua didática possui uma dinâmica com característica de tensionamento entre um saber socialmente válido e reconhecido por tradição, e outro, também tradicional, mas de menor status social. Essa tensão faz com que se produza a priori uma noção no professor-médico, na qual saber medicina é suficiente para legitimar a docência. Vê-se, entretanto, que essa relação não parece ser tranquila para os professores entrevistados, pois tanto docentes quanto gestores, em seus discursos, evidenciaram as dificuldades de trabalhar sem um referencial pedagógico teórico definido e estudado. E, ainda, pouco é percebido no que se refere ao compartilhamento de ensino-aprendizagem que, segundo os próprios docentes, se produz na prática em sala de aula, o que mantém o ensino como simples reprodução de uma tradição, apenas com pálidos retoques de técnicas e materialidades pedagógicas atualizadas.

Nesse sentido, e também conforme se destaca na bibliografia acessada, há uma limitação na discussão e na reflexão sobre essa mesma prática que a restringe ou não permite a reflexão e o esclarecimento sobre as práticas executadas e sobre a possibilidade de enriquecimento teórico e ampliação da visão de mundo do docente. Isso acaba implicando em uma transferência de responsabilidade em sua atuação que pode, então, ser focalizada: no aluno (o perfil imaginado pelos docentes sobre o aluno e a “grife UFRGS”), nos seus colegas professores (quando os entrevistados expressam sua indignação com as formas de ingresso docente), no sistema (os atropelos gerados por reformas e pela avalanche de novos conhecimentos nos campos específicos da medicina) e se manifesta na resistência às críticas, reformas e mudanças curriculares.

Mas é essencial referir que essa resistência não pode ser vista apenas como negativa, pois também é ela que, ao se opor aos poderes instituídos, sinaliza para a intensificação do trabalho docente e para os controles, quase sempre externos ao contexto sócio-histórico-cultural da prática universitária.

Viu-se que a visibilidade conferida ao docente de medicina permite observá-lo como um sujeito perpassado por múltiplas práticas discursivas. Um sujeito tensionado por controles que vão desde a tradição docente — passando por diversas nuances discursivas, midiáticas e de senso comum, incluindo imposições de instâncias não educacionais, como agências de fomento (portanto, também de pesquisa) — até os efeitos de políticas públicas sobre a saúde. Essas políticas, no entanto, não assumem efetivamente a docência como potência mobilizadora do sistema educacional, mas somente como instrumento de sua manutenção, o que dilui as possíveis formas de produção do novo na formação médica inicial.

Abordou-se a administração da gestão na escola médica e na área específica de ensino e as circunstâncias de um compromisso institucional com as Diretrizes Curriculares Nacionais, em cujo contexto torna-se essencial a figura dos gestores no ensino. Entretanto, destaca-se que, apesar da importância contida no papel que os gestores devem desempenhar em relação a esse compromisso, existe uma perda de eficácia à medida que a aproximação docente acontece sem grande convicção e sem a devida valorização, senão por um total desconhecimento a respeito das DCN. Tem-se, portanto, que as discussões sobre esse tema e afins, não sendo suficientemente trabalhadas dentro da instituição, tendem a manter-se sempre como algo exterior, emanando de instâncias superiores, em um ciclo que auxilia a manutenção das formas como estão.

Entendendo-se as Diretrizes para a medicina como orientações de caráter mandatório — embora elas próprias admitam adaptações a cada contexto —, as instituições de ensino médico, premidas pela obrigatoriedade de se adaptarem às determinações legais, correm o risco de encurtar ou prescindir de um processo necessário no campo do enfrentamento ético-político. Processo que, coletivamente, seja instituinte de outra concepção de educação, de formação, de currículo médico, mas também podendo servir para gerar propostas de transformações que não saiam do papel ou mesmo que sejam simples adaptações.

As falas evidenciaram que esse processo internamente não percorreu os mesmos caminhos, problema que pode estar ligado à fragmentação dos departamentos da própria instituição FAMED/UFRGS ou à forma como foi conduzido, gerando dúvidas e mais resistências. A relação de forças transparece na afirmação relatada nas entrevistas de que “quem grita mais é ouvido”, em uma franca desvinculação teoria/prática daqueles que participam das instâncias institucionais decisórias, no atrelamento aos interesses de grupos.

Retomando o Diagnóstico Institucional de 2005 – amplamente citado nesta obra – tende-se a acreditar que há uma tentativa de repensar o fazer no ensino dessa Faculdade e especificamente da cardiologia ao dar ciência à comunidade acadêmica dos pontos relevantes e das medidas sugeridas. Dentre elas, a de sensibilização docente e a instituição de programas de pós-graduação que constituam novos formadores a refletir e discutir o ensino médico em sua plenitude, contextualizando-o de acordo com a época e com as necessidades sociais.

Deve-se considerar que o currículo precisa ser entendido como uma construção social e um somatório das intenções vivenciadas no processo de ensino-aprendizagem para então deixar de ser apenas uma grade de disciplinas e atividades. Desta forma, concorda-e amplamente com a assertiva já citada, de que é essencial a capacitação docente e/para a transformação da prática educacional, visando à qualificação das questões voltadas ao psicossocial, quando comparadas àquelas estritamente voltadas à dimensão biológica.

Nesse contexto mostraram-se necessárias adaptações em relação ao modelo atual, de ensino preponderantemente tradicional, centrado no professor (que oferece prontos os conteúdos para o aluno), de enfoque biomédico e disciplinar, que se soma à fragmentação dicotômica entre ciclos básico/clínico, teoria/prática e trabalho/estudo. Nesse modelo cabe ao estudante a difícil tarefa de integrar os diferentes saberes (ou simplesmente deixar de fazê-lo), a fim de superar uma das características mais salientes que a educação médica contemporânea imprimiu a sua formação: uma atitude pouco reflexiva e questionadora, a assimilação do conhecimento produzido pelos especialistas das disciplinas básicas e das especialidades clínicas.

Ao expressar as nuances que permeiam a instituição estudada, nesse constante e dinâmico processo de apropriação e ressignificação das tendências curriculares, hoje e sempre existentes, acredita-se ter colaborado, com as ponderações aqui feitas, para a discussão a respeito da implantação adaptativa das Diretrizes necessárias ao curso médico, servindo, igualmente, para dar visibilidade à diversidade do pensamento de seus atores. No entanto, embora o momento seja propício para essas adequações, admite-se que existe o risco de uma tendência à manutenção de uma linearidade, no sentido de que as alterações se percam no caminho da história futura, sobretudo por parte daqueles que desejam e estimulam as permanências. Porém, o principal objetivo desta obra foi justamente compreender a amplitude do pensamento docente e não o de se filiar necessariamente a um ou outro aspecto das Diretrizes ou do todo em que se constituiu a medicina e o ensino médico historicamente, pois o intuito maior é o de reforçar o campo para esse debate.

Por esse motivo, ressalta-se: em momento algum se pretendeu transformar essas observações institucionais em uma crítica simplista ao trabalho realizado pelos docentes em foco, até mesmo por me incluir nesse contexto. Mas construir uma crítica reflexiva e trazer à visibilidade os meandros, as mudanças e resistências - do processo como um todo – que, muitas vezes, sequer são conscientes no fazer médico e acadêmico da medicina (ou para as quais pode não ter havido até aqui tempo e/ou espaço apropriados), justamente com a finalidade de contribuir para futuras adequações.

Jorge Alberto Buchabqui
03/12/2014

 

 

site elaborado pela wwsites - sites para escritores